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domingo, 29 de maio de 2011

NINGUÉM CALA, POR CALAR





O NATIMORTO
2009

Direção: Paulo Machline

Lourenço Mutarelli
Simone Spoladore
Betty Gofman

"O Mutarelli é foda! Ele é muito foda!!!", era só isso o que minha amiga Dani conseguia repetir depois da sessão de O NATIMORTO. Eu, sinceramente, não conseguia dizer palavra alguma. Embora leigo em questão do Mutarelli, saí do cinema com sensação estranha de que alguém houvesse roubado meus diários mais íntimos e pensamentos mais sombrios e feito um filme com isso. Mas… deixemos essas divagações para o Making Of, certo.



Roteiro adaptado por Andre Pinho, do livro O Natimorto - Um Musical Silencioso (escrito por Mutarelli), o filme conta com a lente crua e lírica de Paulo Machline. Os diálogos criados pelo próprio Mutarelli, que, ao atuar como seu protagonista, confere à fita sua aura sombria e subterrânea; compôem junto as atuações impecáveis de Gofman e Spoladore, uma obra forte, enervante. Transbordando misantropia e lirismo.

Um Agente de talentos apaixona-se por uma garota de "Voz pura", convidando-a para São Paulo onde ele apresentá-la-á ao maestro que poderá lançá-la ao estrelato. A relação gera o ciúme de Esposa do Agente, que desdenha da impotência sexual do marido diante da Voz. Após uma cena histérica de ciúme da Esposa, o Agente faz uma proposta para Voz: viverem num quarto de hotel, isolados, juntos, usando das economias do Agente. A proposta amalucada cria um misto de riso zombeteiro e admiração na Voz. Ela aceita, não aceitando, por assim dizer. Deixa-se levar. Estabelecendo-se uma relação ambivalente: o Agente ama a Voz, um amor supremo, que extrapola o físico, intangível; a Voz admira a inteligência do Agente, suas histórias, seus simbolismos, sua figura frágil e "assexuada". Mas, ambos cientes de seu poder magnetizador um sobre o outro: a Voz tem consciência de sua beleza, de seu encanto; o Agente é sagaz e ardiloso, fazendo-se valer de suas histórias e interpretações místicas e metafísicas, hipnotizando sua presa.

O Agente convence a Voz a morar com ele num quarto de hotel, ela por sua vez se aproveita da mordomia de viver às custas dele. Cada um busca a segurança e algo mais. O Agente apresenta a Voz seu costume de interpretar as imagens de advertência nos maços de cigarros, ligando-as aos significados dos arcanos maiores do tarô. Isso desperta a curiosidade da Voz, a curiosidade humana natural pelo oculto. O Agente todas as manhãs interpreta seus maços, seu tarô, acreditando que o dia de cada um estará ligado ao significado da figura que cada teve a "sorte" de tirar. Entretêm a Voz com suas histórias de infância, como uma Sherazade que adia a Morte. Um Mago. Esta relação de poder psicológico que ilustra tão bem, de forma exacerbada como é de feitio da Arte, muitas relações amorosas. A tirania emocional, a divinização do ser-amado, platonismo, obsessão. Ele vê nela a pureza, o canto sublime. Ela vê nele a sabedoria, fonte de cultura. Entretanto, é no subsolo de cada ser que fervem as maquinações egoístas: ele quer subjugá-la, fazê-la sua; ele é para ela o trampolim, a segurança financeira, o súdito.



A persona do Agente está ligada ao sublime, ao intangível. Ele opta por ser um assexuado, pelo isolamento, pela misantropia, pela renúncia de tudo. O que cria em seu âmago a obsessão pela Voz, tão pura. Ele é O Enforcado, imperrado, em pausa, impotente. Ela demonstra aos poucos que sua aura divina é conferida apenas pelo Agente, sua real natureza é muita mais terrena. Seu canto sirênico, suas formas afrodisíacas, seu sorriso zombeteiro, seus lábios de Hécate. Tudo o véu de odalisca cai quando o Agente interpreta seu maço de cigarros como sendo a carta O Diabo. A Voz é paixão, instinto puro e sobretudo subserviente. É a "carta" do coisa-ruim que causa tumulto. Após esta interpretação Os Amantes descerão mais e mais à escuridão. Cigarros. Café. Lençóis sujos de sangue. Tudo se misturará!

O Natimorto: confere maternidade à mãe unida à dor no peito em dizer "meu filho morreu". Vida uterina que transcende à morte sem a mácula do mundo. As posições fetais do Agente emulam a criança assustada em todos nós. O anseio de morte é acreditar que poderá retroceder ao útero. Suas palvras são uivos sobre o túmulo materno, a constatação da imutabilidade do que já foi.

A lente de Lito Mendes da Rocha é dessaturada, desbotada. Mas, em momentos precisos, as cores vem com violência, como em acessos epiléticos. O vermelho-sangue. O verde-hipnótico. Cadênciados. Os planos são por vezes voyerísticos e etéreos. Como se o espectador fosse um inseto curioso, um espírito que espreita. A montagem de Oswaldo Santana tem ritmo: por ser um filme que se passa quase todo num só cenário, com dois personagens dialogando, o filme poderia arrastar-se. É mérito de Santana criar as ondas que impulsionam o espectador à interessar-se mais e mais pelos diálogos, pela trilha, pelas atuações. A mão precisa e segura de Machline orquestra tudo isso. Sendo, entre muistas escolhas, seu grande acerto em filmar a Voz cantando em silêncio, já que a perfeição aludida pelo Agente desmoronaria ao ouvirmos a voz real de qualquer que fosse a cantora. A perfeição etérea e platônica!

Betty Gofman esta amedrontadora, uma Esposa-Hera. Simone Spoladore empresta toda sua graça e sensualidade à Voz - uma sereia, uma odalisca, que gera paixão e ódio. Mutarelli é o Agente, indubitávelmente. Toda a obsessão e loucura do personagem, sua aparência dócil e inofensiva, são o próprio autor.



ATENÇÃO SPOILLER: Subversivo, subterrâneo, Mutarelli cria uma fábula sombria. O mito grego das sereias conta que estas criaturas belas encantavam navegadores homens com seu canto e formosura, atraíam-nos para junto de si, revelendo só no último segundo sua real natureza monstruosa, engolindo-os. A Voz sirênica encanta o Agente, cria-lhe a paixão, brinca com seus sentidos, colaca em xeque sua assexualidade, zomba de suas crenças, porém, não percebe que a hipnose do Agente é muito mais poderosa. A Voz não nota que apesar de sua repulsa pelo Agente, ela acaba sempre voltando. Eterno retorno. Lemniscata ( \,\!\infty ). Círculo vicioso. Paradoxos. Por que ela volta? Se ele lhe faz tanto mal, se ela não vê nele qualquer beleza, se tudo o que ele diz é horrível, por que voltar? A sereia está no redemoinho de Scylla, o monstro marinho. "Quanto você pesa?", ele pergunta mergulhado na banheira.
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MAKING OF: Escrevendo tudo isso me dei conta que comentar os "bastidores" da minha análise seriam doloridos demais. Obsessões, simbolismos, paixões… Eu passo, desta vez!


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2 comentários:

  1. Adorei o texto. Mas em relação a pergunta final do filme, 'quanto você pesa?', quero entender melhor..

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  2. Olá, cara Marina. Agradeço o elogio. A pergunta denuncia para o público a intenção do Agente em literalmente devorar a Voz. =/

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