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sábado, 27 de novembro de 2010

O ARADO E AS SEMENTES: LAVOURA, PARTE I

LAVOURA ARCAICA
2001
Luis Fernando Carvalho
Selton Mello
Simone Spoladore
Raul Cortez
Leonardo Medeiros
 


Eram 6h15min. Do dia 07 de Setembro, ano 2010. A esta data eu assisti, depois de muitas tentativas, de uma só vez, o filme LAVOURA ARCAICA, leitura imagética da obra de Raduan Nassar por Luiz Fernando Carvalho. Desculpem-me se estou sendo exageradamente detalhista no início deste post, mas, o longa de Carvalho é, sem dúvida, uma marco para mim. Como aspirante à cineasta, experiênciar este filme tão magnífico, tão soberbo, é, paradoxalmente recompensador e martirizante, ao mesmo tempo.
Como cinéfilo foi uma experiência singular, inebriante, quase inefável. Já que LAVOURA é do gênero de filme que não cabe em gênero algum: do tipo raro, precioso, daquele que é preciso garimpo mental e emocional, capaz – se você o permitir – de levá-lo a lugares em que jamais esteve.

Como “aluno de cinema”, embora, eu não o seja oficialmente – não pertenço a qualquer entidade educacional, ousando no autodidatismo – não há como não invejar o que se vê na tela. LAVOURA é obra de arte, obra-prima, genial e sinergética. Ouso dizer que Luiz Fernando e sua equipe atiraram o dardo além dos limites humanos, será preciso esforço hercúleo de qualquer outra equipe de produção cinematográfica para alcançar seu recorde. Pouco sobrou para qualquer diretor fazer, depois deste filme. Pois LAVOURA é como um vinho raro, bebendo-o, dificilmente você se contentará com vinho inferior.

Sei que não sou crítico de cinema, nem diretor ou qualquer autoridade para ditar tais paradigmas. Nem é minha intenção ditar qualquer coisa. Escrevo unicamente para exorcizar meus sentimentos. Sobre LAVOURA ARCAICA escrevo muito mais do pensei, mas o que senti. Este filme infiltrou-se pelas fissuras de minha carne, alcançando a quintessência de meu Eu.

Sinto apenas por não ter visto este filme apropriadamente, na sala de cinema, totalmente submerso naquele mundo. Vi o filme sentado a uma cadeira desconfortável, num monitor de pouco menos que 20 polegadas, com fones de ouvido de baixa qualidade, durante madrugada adentro. A estas debilidades técnicas deve-se meu longo atraso em ver LAVOURA. Sou muito sincero em dizer que por cinco vezes abandonei o filme, passando poucas vezes da primeira hora de “exibição”, sendo que o filme tem três horas de duração, no total.

O cansaço e a fadiga pós-modernos sempre abatiam meu corpo, deixando meu espírito faminto e insaciado. “Mal sabia eu que o amor requer vigília!” E foi assim, de forma religiosa, como um fiel em oração, que assisti um dos melhores filmes já produzidos no mundo.

As impressões que se seguem, friso muito bem, não têm caráter ensaístico, embora, assim se apresentem a alguns. São, na melhor das hipóteses, anotações pessoais compartilhadas. Não conheço a obra de Nassar, não sei nada sobre os trabalhos pregressos de Luiz Fernando e – ainda bem que escrevo este texto sem conexão à internet – tomei a decisão de escrever tudo isso sem tal pesquisa. A vantagem de se escrever para um blog pessoal é a de não ter a obrigação jornalística habitual. Peço perdão aos artistas se cito suas obras de maneira leviana, com “analises” superficiais, mas, toda obra de arte está além de seu artista criador, sujeita, e, porque não dizer, submetida por seu criador, a analises subjetivas, muitas vezes, alheias às intenções do autor.

Não desejo me vitimizar, mas, lembro-me de vezes em que os significados de meus desenhos eram tão claros para mim, sólidos e cinzelados, porém, quando os submeti aos olhares estrangeiros ao meu mundo, notei que nem sempre as pessoas notavam o que para mim era primordial; onde havia tristeza e ódio, elas viam gozo e prazer. Dei-me conta então de que nada adiantaria eu culpar tais “desavisados” pela “má análise” de meus desenhos, se eles não notavam as pedras fundamentais em minhas obras era por que eu as ocultara, muitas vezes deliberadamente, na construção de meus universos.

Meu desejo é o de chegar ao patamar além do autobiográfico, em que as comparações e identificações tornem-se impossíveis. Galgar o título de criador por excelência, rompendo com o cárcere biográfico. Mas, isso já assunto de outra postagem. Falarei sobre o filme, dividindo-o em prólogo e atos – novamente de maneira arbitraria e subjetiva – pois, sei que os poucos leitores deste blog, assim como os leitores pós-modernos em geral, não dispõem de tempo e paciência para ler toda a minha impressão sobre o filme, pelo menos não em uma “tacada só”.

Aviso que elementos cruciais da trama serão descritos por mim. Se você ainda não viu o filme e não quer estragar a surpresa, pare de ler agora. Um dos fatores de me desencorajarem a ver o filme antes foram os vários comentários e revelações sobre a trama. Optei por esperar que todas essas opiniões pré-fabricadas fossem demolidas em minha mente, para só então ver o filme.

Alerto também que aqueles que não forem familiarizados com a Teogonia, de Hesíodo, ou, não tenham a mínima idéia acerca do significado e simbolismo dos nomes dos deuses greco-romanos, invariavelmente, não compreenderão minhas anotações. LAVOURA ARCAICA é uma tragédia grega universal, ouso dizer. Você pode fazer uso de um dicionário mitológico on line, se preferir. Quanto algum estudioso desavisado que leia isso agora, friso novamente, isso aqui não é um ensaio de gabarito acadêmico, não faço faculdade alguma, portanto, críticas e sugestões esclarecedoras e construtivas são sempre bem-vindas. Meu uso de certos nomes de deuses e mitos é puramente arbitrário e subjetivo: “cada um vê o que quer”.


PRÓLOGO: BACO E APOLO


LAVOURA ARCAICA inicia-se com o som de uma locomotiva, ao passo que somos apresentados ao protagonista André (Selton Mello), em momento íntimo. Acerca do jovem nu e estirado ao chão, de começo, não se pode inferir, com certeza, se está prestes a ter um orgasmo ou sofrendo de convulsões epilépticas, talvez, André esteja experimentando justamente ambas as sensações, extrapolando o sensorial comum, segurando à ponta dos dedos o carnal e o metafísico em um só membro. Como um poeta vidente, segundo as palavras de Rimbaud. Já nestes primeiros segundos Luiz Fernando expõe o forma perene no filme, que fez de sua obra muito mais do que uma reles adaptação cinematográfica de uma obra literária. Nas palavras de outros críticos, LAVOURA é escrito com imagens, o que, segundo Tarkovski é cinema puro. O diretor alcança tal efeito, de forma brilhante, por meio – mas não somente - do simbolismo.


O desejo sexual é esta locomotiva, desenfreada, mortífera, que vara sem piedade, de forma impetuosa, as barreiras do linho e dos paramentos. André é como uma figura barroca em êxtase, um Cristo profano e báquico, na escuridão de um quarto rústico. Ele é um rio profundo, negro e fluente, indômito, que rompeu e estraçalhou as barragens da tradição patriarcal, ancestral e milenar. André é o irmão insubordinado, problemático, desgarrado, e, por isso, consciente e lúcido em sua loucura, das deficiências e incompletudes do amor e da vida.

Por outro lado, o som da locomotiva significa também que o que ele é prosaicamente: o som de um trem se aproximando. O transporte veloz que traz Pedro (Leonardo Medeiros), o filho primogênito. Pedro foi incumbido da tarefa de buscar “o irmão fujão”. Pedro, a pedra, a rocha, o sólido irmão mais velho, favorito do pai, talhado nas leis morais, portador dos valores e ensinamentos eclesiástico-patriarcais. Pedro é o equilíbrio apolíneo, ele trás a luz e a ordem, de forma inesperada e abrupta. Ora amável e benigno, ora impositor fanático das leis do pai; como um profeta hebreu na Antiga Aliança.

Baco, o louco, é superpreendido por Apolo, o equilibrado, não podendo sequer desfrutar do êxtase de seu último ritual orgástico, segue as ordens do irmão mais velho como se fossem as do próprio pai, pois, na prática, elas são. Poder-se-ia até dizer que o temor ao irmão mais velho sobreponha-se ao temor que André sente pelo pai. Já que o diálogo – que se torna um monólogo de André – com o irmão Pedro, só é posto em prática com a ajuda do vinho ebriante de Baco/Dionísio.

Mas, de primeiro, Apolo trata de ordenar as coisas: “abotoa a camisa”, “abre as venezianas”, deixa entrar a luz. Pedro, o portador da luz, aquele que inconscientemente trás a clarividência ao espectador, quanto aos fatos ocorridos, um oráculo às avessas. É num lampejo que enxergamos ingenuidade infantil de André, só para retornarmos a obscenidade e decadência de sua existência adulta. Notamos então um ciclo, ou, nas palavras de Medéia, “uma espiral de horror”. Somos obrigados a parafrasear-la, novamente, perguntando: ”Quem terá iniciado esta espiral de horror?”.

ATO I: O PANTEÃO

Toda lavoura é um ciclo. Desde a preparação da terra, ao arado, o semear, a adubação, a germinação e todos os estágios até a colheita, onde o lavrador, completado o ciclo, sabe que retomará tudo novamente desde o (re)início. O eterno retorno da existência em que cada vida efêmero-eterna – inclusive a humana - esta presa e conectada, e, usando de melhor analogia, enraizada às leis naturais.

Há aqui o uso brilhante dos arquétipos na construção dos personagens, seres cheios de camadas, o espectador só vê a ponta do iceberg – como deve ser - mas, sabemos intuitivamente que há muito mais lá; o roteiro e filmagens são corajosos, fugindo da exposição gratuita, assistimos e sentimos a estória, o diretor-roteirista tem a liberdade de nos revelar o imprescindível à hora certa. A poesia é perene, através das palavras ditas, da trilha apoteótica de Marco Antonio Guimarães (do grupo Uakti), na fotografia sépia-barroca de Walter Carvalho, no viver artaudiano (do teórico Artaud) dos atores, no figurino autêntico da epoca, pois, poesia é Vida palpável e metafórica, é a reconstrução da realidade, onde a ficção torna-se mais real. Poesia é a invenção da Vida!

Nosso narrador será André, ora em suas confissões exasperadas, cheias de dor e revolta ao irmão Pedro, ora em seu relato maduro (voz do próprio diretor Luiz Fernando), adulto, carregado de amargura, direto ao espectador. André é uma semente anômala no campo familiar, “uma planta enferma”, uma alma perturbada vivendo em “corpo tenebroso”. Ele será aquele que corromperá o equilíbrio aparente, também será ele que trará à superfície toda a verdade oculta, pois, como poeta-vidente será ele o arauto da Mãe Terra, o filho escolhido de Gaia que arrancará seus irmãos do ventre da terra.

Existe o claro tema do filho pródigo aqui, porém, subvertido. André, de todos os irmãos e irmãs, era em sua infância o mais religioso de todos, o mais apegado à mãe, aquele que mantinha contato hipersensorial com a terra e o céu, e os espíritos naturais. As árvores eram para ele guardiãs (dríades), as raízes apresentadas como duendes, o próprio vento têm vida. Para André a fazenda é um organismo vivo. Seu próprio deus era palpável, na figura do escapulário. O ambiente familiar da infância é lúdico, edênico, ingênuo, claro e dourado, como a Idade do Ouro do homem, mas já há aí um perigo velado. Poeticamente isso é emulado quando, uma criança, em plano subjetivo (provavelmente André), volta pra casa, depois da missa, assoprando sementes de girassol ao vento e deparando-se com um cupinzeiro à beira do caminho, vislumbrando ao longe a casa.

Eu arriscaria dizer que as sementes de girassol ao vento são Vida, que, se aparenta casual, levada pelo vento, insondável, incontrolável, bela e misteriosa; o cupim é amplamente conhecido como o inseto que corrói, lentamente, pacientemente, oculto e sorrateiro, um câncer maligno. Essa cena é Eisenstein puro e simples. Eisenstein, cineasta russo (dirigiu, entre outros, O ENCOURAÇADO DE POTENKIM) falava sobre esta “justaposição de imagens”, em que A + B não é igual a AB, mas a C.

O que torna André diferente do filho pródigo da parábola bíblica é justamente esta sua devoção exacerbada. André não saiu de casa à procura mulheres e aventuras, sua façanha é justamente oposta, sua volúpia é religiosa: “Para onde estamos indo?”, pergunta e responde: “Estamos indo sempre pra casa”. Ele é o anjo decaído, luciférico, deslocado e enfermo, numa overdose de glória. Ele ama o Paraíso, mas aquela claridade estar por sufocá-lo e cega-lo.

Mas esta “planta enferma” foi semeada por quem? Quem arou a terra e adubou-a? De onde germinou este tirso obsceno e venenoso? Onde estava o lavrador ou o jardineiro que não notaram tamanha “protuberância mórbida” que crescia? Quais os outros elementos desta lavoura?

Existe o tronco. A figura do pai (Raul Cortez), de onde saem dois galhos, divididos à mesa de jantar: o galho que começa em André, à direita, com este e as filhas mais velhas, e, à esquerda, partindo da mãe, indo até o filho caçula. O galho da direita é a força e a tradição familiar, o da esquerda é a anomalia causada pelo excesso de afeto e carinho da mãe. O pai é mais do que o mantenedor, ele é o sacerdote, o senhor da ordem e “justo” juiz, com seu zelo excessivo, e, porque não dizer, com seu amor excessivo, perdão benigno opressor, que sufocam e amedrontam.

Mesmo com seus excessos, os valores do pai são, paradoxalmente, contra o conceito grego hýbris, segundo Junito Brandão, a démesure, o descomedimento. “O mundo das paixões é o mundo do desequilíbrio”. Como arquétipo paterno este personagem é um híbrido do Zeus grego, aquele que impõe a ordem, filho de Crono (o Tempo que gera e devora), junto com o próprio deus mouro-cristão, que, demanda exagerada paciência e moral de seus filhos, além de sua submissão inquestionável.

Há a figura da mãe (Juliana Carneiro da Cunha), vista como uma anomalia, devido ao seu afeto excessivo - novamente o excesso - direcionado ao favorito na linha matrilinear, ou seja, o filho mais novo, que, na infância de André era ele próprio. Seu olhar carrega uma tristeza silenciosa, uma piedade sofrida, o símbolo da Grande Mãe Terra (Gaia/Cibele/Ceres/Réia), amorosa e zelosa por suas crias, assistindo muda ao despotismo do homem, impotente a tirania patriarcal que engole seus filhos. Suas carícias direcionadas à André emulam quase um desejo edipiano. Note quando ela abraça ao filho Pedro, como se abraçasse André, a maneira de seus toques lascivos.

Na base do galho mais forte está Pedro, o filho primogênito, o sucedâneo paterno. Pedro é o equilíbrio apolíneo, solar, imutável. Ele detém o principado familiar, pode se inferir que é a ele que André teme muito mais, ofertando-lhe o vinho, embebedando-o, ludibriando-o primeiro, para que possa realmente falar. Entretanto, dos personagens apresentados, Pedro talvez seja o mais ingênuo dos irmãos; pois, antes da fuga de André, Pedro era ignorante quanto aos sofrimentos da família, aos jogos sexuais das irmãs bacantes, alheio quanto ao efeito da bela irmã Ana, às insatisfações do caçula Lula, à magnitude do amor materno. Pedro é o profeta fanático da lei paterna, vive sob regras, não conhece a vida em sua em todo o seu esplendor. É a Pedro que compete a tarefa de resgatar e limpar o irmão desgarrado. Mas será Pedro quem sairá calcinado da experiência, salpicado de vinho e vômito.

Ana (Simone Spoladore). Ah, Ana! A personagem mais complexa, em minha opinião. Muda, soundless, durante todo o filme. Ana é o duplo de Artaud. Símbolo de pureza e luxúria. André apaixona-se pela irmã, subvertendo o mandamento do pai que diz “não há felicidade fora da família”. É Ana que protagoniza duas das cenas mais belas do cinema. É Ana o sopro de vida, mas é ela também a lâmina da morte. Ana é o paradoxo. Ana é a Antígona silenciosa, rebelde e submissa. Ana é a semente do amor e a colheita da loucura. A lavoura se dá por ela.

Já que as três irmãs mais velhas pouco são exploradas no filme, por último vem Lula (Caio Blat), o caçula. Lula contrai a rebeldia virulenta do irmão André, sem a mesma poesia e sensibilidade, no entanto. Sufocado com a tirania do pai, anseia em desafiar o velho, espelhando-se no irmão báquico. Fugir em busca do “desregramento dos sentidos”.

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